sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Episódio 3 (Trois)

Imagem: Wikipedia

Telmo entra de rompante na cozinha, ao som do metal das colheres batendo uma na outra, dando forma aos pastéis de bacalhau:

- Eh tá mãe, ooooooh?!*

- Diz lá...

- Tá ali uma galega** que diz que quer falar consigo!

- Uma quê?! - perguntou a Mãe.

- Uma ruiva!

- Ai é a menina para alugar a "casinha"!

A Mãe encaminha a jovem para a sala de estar, onde Sandro António está arroxado no sofá a fumar tabaco de enrolar.

- Sónia?! Que é que estás aqui a fazer? - perguntou Sandro António

- Eu agora não me chamo Sónia. ´Tive na India e agora quero que me tratem por Sarasvati.

-Não dá para ser só Sara?

- Não. Sarasvati exprime a minha verdadeira essência. ´Tás a ver?

- Sabes que depois daquela cena entrei para o Seminário e agora estou na cena pastoral.

- Tu? Padre?!

A mãe apercebe-se que algo de estranho se passa entre Sarasvati e Sandro António e decide intervir.

- O meu Sandro António é padre, sim senhora! E agora venha lá para lhe mostrar a "casinha".


* - Onde está a mãe?

** - Vaca de pelagem arruivada.

Episódio 2 (Dois)


Estavam todos na sala e a Mãe disse:

- Isto está mal e acho que devemos alugar a "casinha".

- Ai mãezinha - choramingou Flávio - mas é aí que eu faço os meus alongamentos e ensaio as coreografias!

- Filho, faz tanta falta um dinheirinho ao fim do mês. E ainda faltam doze prestações do plasma!

- Mãe, eh mãe - perguntou Telmo - quem é que vai querer alugar um anexo ilegal no quintal, ainda por cima com telhado de zinco?

- Ai mãezinha eu podia fazer uma decoração moderna, com damascos na parede...- disse Flávio, entusisamado.

A Mãe sentiu falta da opinião sábia de Sandro António, que estava ausente devido a cenas pastorais, mas avançou:

- Andou aqui uma mocinha estudante na rua a procurar por quartos para alugar.

- Isso, isso! Gado fêmeo dá sempre jeito...eheh! Já estou farto de viver com cabrestos*!

- Telmo, já estou farta de te dizer para não chamares isso aos teus irmãos - retorquiu a Mãe.


*boi manso

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Episódio 1


A Mãe está na cozinha, a fazer peixinhos da horta, mas com feijão verde congelado, daquele cortado muito aos bocadinhos, que o fresco está pela hora da Morte. Telmo entra na cozinha.
- Mãe, oh Mãe, estão aqui as minhas botas para a Mãe engraxar.
- Ó filho, a mãe agora não tem vagar que está a fazer os peixinhos da horta para o Flávio, que ele hoje não tem aulas e vem jantar.
- Ai é? A "Nancy" hoje não tem ballet? Então, eu vou à sopa de cornos*!
- Ai Telmo, tu janta-me em casa. Não sejas assim para o teu irmão...
Flávio entra na cozinha a cantarolar um trecho do Quebra Nozes:
- Ai, mãezinha! Peixinhos da horta! Gosto tanto, mas faz-me celulite e nota-se por de baixo do maillot...
- Olha lá, ó "florzinha" - responde Telmo, enraivecido - devias era comer tremoços que não engorda e sempre é coisa de homem!
As lágrimas inundam agora o olhar sereno de Flávio:
- Poça, Telmo! Eu sou teu irmão. Eu mereço-te respeito. Já não te peço carinho ou amizade, mas ao menos, que possamos conviver tranquilamente debaixo do mesmo tecto. Lá porque maltratas os animais, não quer dizer que maltrates também os seres-humanos. Porque, sim, Telmo, eu sou um ser-humano...
- Ainda bem que avisas que és um ser-humano senão ainda te pegava à barbela...
- A ti, não, mas olha que fica sabendo que a um dos teus cólegas bem que facilitava...
Telmo dá um murro na mesa e investe para o seu irmão mais novo. A Mãe, aflita, atira com a travessa dos peixinhos da horta no vidro da janela da cozinha, que não se partiu mas vai dar uma trabalheira para tirar a gordura. Gritos.
Entra Sandro António, acabado de celebrar a missa das 7:
- Pessoal, que é isto? Jesus não ia gostar nada destas cenas. A cena de Jesus era mais tranquila. Vou arroxar ali no sofá uma beca e quando voltar quero ver o pessoal mais tranquilo, ok?
- E eu vou para a sopa de cornos.
Telmo sai, deixando para trás um caos de farinha, feijão verde e gordura. Flávio sai, lacrimoso, para o seu quarto.
- Aaaaai...disse a mãe.
*-caracóis

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Episódio 0

Como tudo naquela casa, a Mãe é muito tranquila, principalmente desde que toma tranquilizantes para cavalos que a atiram para um sono - também ele tranquilo -por cima da sopa juliana, ao jantar. Tudo isto, desde que descobriu que o seu filho mais novo era maricas. No fundo, a Mãe sabe que a culpa é sua porque sempre desejara ter uma menina. Então, mandava para a escola o pequeno Flávio, bem penteadinho e perfumadinho, o que fazia com que as outras crianças na carrinha do externato quase sufocassem com o aroma almiscarado da colónia do menino. As crianças são cruéis e a vingança veio sob a forma de alcunha: Nancy Bailarina. Com o tempo, o "Bailarina" caíu e, ainda hoje, as pessoas do bairro tratam o Flávio por Nancy. E o Bailarina tornou-se desnecessário porque Flávio ingressou no Conservatório de Dança.
O Telmo - o do meio - é que tem uma grande revolta, não pela alcunha atribuída ao seu irmão, mas pela delicadeza daquele em quem tinha depositado a esperança de ser o seu companheiro nas lides da tauromaquia.
A sorte da Mãe é que o seu Sandro António, o mais velhinho, desde tenra idade tinha mostrado um grande desejo de entrar para a vida eclesiástica, alimentado pelas centenas de pagelas, medalhas e imagens da Nossa Senhora que lhe trazia a Avó Benta quando ía a Fátima nas excursões da paróquia. Hoje em dia, é o Padre Sandro António e herdou do Avô a alopécia degenerativa que o faz parecer-se com um conhecido santo.
O Pai também é muito tranquilo, mas não passa muito tempo em casa. É camionista. Partilha os seus dias com um palito hidráulico e um calendário da Samantha Fox de 1986, a caminho de França.
A Avó Benta sucumbiu. Mais tranquila não pode haver.