quarta-feira, 1 de abril de 2009

6º Episódio 6º

Enquanto as lágrimas de Sarasvati caíam no prato e Sandro António abraçava a sua amiga, na esperança de lhe dar algum conforto e cenas, Flávio cuspia os caroços da anona que comia à sobremesa.
- Olha, amiga - avançou Flávio - não tens que ter vergonha só porque foste pobre. Olha para mim, que não tenho onde caír morta e não tenho vergonha nenhuma na cara!
Quando um sorriso invadiu a face de Sarasvati, Telmo sentiu-se enfurecido com o comentário do irmão:
- Morta?! Morta?! - o olhar de Telmo reflectia tudo o que lhe ia na alma.
- Sim, "morta"! Sou uma alma livre, que não vive presa a esses preconceitos de género, percebes? Eu sou um artista! - respondeu Flávio.
- Não me venhas cá com essas palavras caras, tu não tens é vergonha nehuma nessa cara!
- Então, era o que eu estava a dizer à míuda! Parece que é tola...
Telmo puxa os colarinhos do seu irmão. A família acorre para separar os dois irmãos.
A campaínha toca.

Episódio 5 (5 é o meu número da sorte! Ai ele ama-me!)

É hora de jantar. A família está à mesa, reunida à volta de uma travessa de maranhos. Sarasvati junta-se à mesa para jantar.
- Sarinha, dá-me cá o teu pratinho para eu te servir - diz a Mãe.
- Mas o que é essa cena que vocês 'tão a comer? - perguntou Sarasvati, intrigada com o aspecto do que estava na travessa.
- É maranhos, filha!
- E isso é...
- ...bucho recheadinho com arroz, carne e hortelã! - completou a Mãe.
- Mas isso é carne...e eu sou vegetariana! - ripostou Sarasvati.
- Ó filha, também tem uma hortelãzinha que sempre é legume! Chegas a carne para o lado...
A Mãe serviu Sarasvati que comeu tudo o que estava no prato, incluindo a carne, a pele e uma formiga que tinha ficado agarrada ao prato desde a última vez que esteve no escorredor.
- Haja saúde e dinheiro para vinho! - exclamou Telmo - vegetariana, vegetariana mas enfardou ali a carninha toda! Safa, até deu gosto...
- A Sarasvati passou muitas dificuldades, sempre com muita dignidade. É por isso que nunca recusa um prato cheio de cenas, percebes? - avançou Sandro António.
Sarasvati deixa escapar um pequeno arroto e lágrimas escorrem pela sua cara, salpicando o prato já vazio dos maranhos.
A tensão instala-se.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Episódio 4/ 4ºEpisódio

(Ler com sotaque de locução "Herbert Richards") No último episódio, uma tensão invadiu o ambiente tranquilo da família, com a entrada de uma hóspede. No entanto, Sarasvati não era uma total desconhecida para todos...
Telmo entra no quarto de Sandro António, que está arroxado na cama, a ler:
- Olha lá, Sandro, de onde é que conheces esta "galega"?!
- Não fales assim da Saras...cenas! Ela é uma míuda "cinco estrelas"!
- Eh pá, eu ainda não lhe dei pontuação! Tu já?!
Sandro António, visivelmente perturbado, e com o olhar preso no Infinito - não o canal 119 da grelha Zon/TvCabo - salta da cama:
- Porque é que me vens interromper a meio das minhas leituras de cenas beatas?
- Tu já "pitaste" a "galega", não foi Sandro? - perguntou Telmo.
- Conheci a Sarava...Sas...Sónia quando fiz voluntariado com os desfavorecidos da Quinta da Marinha, no Verão antes de ir para o Seminário. A Sónia era um desses desfavorecidos, filha de um ex-presidente corrupto de um clube desportivo. Falávamos durante horas...
- Mas "pitaste-a"? - insiste Telmo.
A Mãe entra subitamente no quarto e diz:
- O "comer" está na mesa.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Episódio 3 (Trois)

Imagem: Wikipedia

Telmo entra de rompante na cozinha, ao som do metal das colheres batendo uma na outra, dando forma aos pastéis de bacalhau:

- Eh tá mãe, ooooooh?!*

- Diz lá...

- Tá ali uma galega** que diz que quer falar consigo!

- Uma quê?! - perguntou a Mãe.

- Uma ruiva!

- Ai é a menina para alugar a "casinha"!

A Mãe encaminha a jovem para a sala de estar, onde Sandro António está arroxado no sofá a fumar tabaco de enrolar.

- Sónia?! Que é que estás aqui a fazer? - perguntou Sandro António

- Eu agora não me chamo Sónia. ´Tive na India e agora quero que me tratem por Sarasvati.

-Não dá para ser só Sara?

- Não. Sarasvati exprime a minha verdadeira essência. ´Tás a ver?

- Sabes que depois daquela cena entrei para o Seminário e agora estou na cena pastoral.

- Tu? Padre?!

A mãe apercebe-se que algo de estranho se passa entre Sarasvati e Sandro António e decide intervir.

- O meu Sandro António é padre, sim senhora! E agora venha lá para lhe mostrar a "casinha".


* - Onde está a mãe?

** - Vaca de pelagem arruivada.

Episódio 2 (Dois)


Estavam todos na sala e a Mãe disse:

- Isto está mal e acho que devemos alugar a "casinha".

- Ai mãezinha - choramingou Flávio - mas é aí que eu faço os meus alongamentos e ensaio as coreografias!

- Filho, faz tanta falta um dinheirinho ao fim do mês. E ainda faltam doze prestações do plasma!

- Mãe, eh mãe - perguntou Telmo - quem é que vai querer alugar um anexo ilegal no quintal, ainda por cima com telhado de zinco?

- Ai mãezinha eu podia fazer uma decoração moderna, com damascos na parede...- disse Flávio, entusisamado.

A Mãe sentiu falta da opinião sábia de Sandro António, que estava ausente devido a cenas pastorais, mas avançou:

- Andou aqui uma mocinha estudante na rua a procurar por quartos para alugar.

- Isso, isso! Gado fêmeo dá sempre jeito...eheh! Já estou farto de viver com cabrestos*!

- Telmo, já estou farta de te dizer para não chamares isso aos teus irmãos - retorquiu a Mãe.


*boi manso

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Episódio 1


A Mãe está na cozinha, a fazer peixinhos da horta, mas com feijão verde congelado, daquele cortado muito aos bocadinhos, que o fresco está pela hora da Morte. Telmo entra na cozinha.
- Mãe, oh Mãe, estão aqui as minhas botas para a Mãe engraxar.
- Ó filho, a mãe agora não tem vagar que está a fazer os peixinhos da horta para o Flávio, que ele hoje não tem aulas e vem jantar.
- Ai é? A "Nancy" hoje não tem ballet? Então, eu vou à sopa de cornos*!
- Ai Telmo, tu janta-me em casa. Não sejas assim para o teu irmão...
Flávio entra na cozinha a cantarolar um trecho do Quebra Nozes:
- Ai, mãezinha! Peixinhos da horta! Gosto tanto, mas faz-me celulite e nota-se por de baixo do maillot...
- Olha lá, ó "florzinha" - responde Telmo, enraivecido - devias era comer tremoços que não engorda e sempre é coisa de homem!
As lágrimas inundam agora o olhar sereno de Flávio:
- Poça, Telmo! Eu sou teu irmão. Eu mereço-te respeito. Já não te peço carinho ou amizade, mas ao menos, que possamos conviver tranquilamente debaixo do mesmo tecto. Lá porque maltratas os animais, não quer dizer que maltrates também os seres-humanos. Porque, sim, Telmo, eu sou um ser-humano...
- Ainda bem que avisas que és um ser-humano senão ainda te pegava à barbela...
- A ti, não, mas olha que fica sabendo que a um dos teus cólegas bem que facilitava...
Telmo dá um murro na mesa e investe para o seu irmão mais novo. A Mãe, aflita, atira com a travessa dos peixinhos da horta no vidro da janela da cozinha, que não se partiu mas vai dar uma trabalheira para tirar a gordura. Gritos.
Entra Sandro António, acabado de celebrar a missa das 7:
- Pessoal, que é isto? Jesus não ia gostar nada destas cenas. A cena de Jesus era mais tranquila. Vou arroxar ali no sofá uma beca e quando voltar quero ver o pessoal mais tranquilo, ok?
- E eu vou para a sopa de cornos.
Telmo sai, deixando para trás um caos de farinha, feijão verde e gordura. Flávio sai, lacrimoso, para o seu quarto.
- Aaaaai...disse a mãe.
*-caracóis

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Episódio 0

Como tudo naquela casa, a Mãe é muito tranquila, principalmente desde que toma tranquilizantes para cavalos que a atiram para um sono - também ele tranquilo -por cima da sopa juliana, ao jantar. Tudo isto, desde que descobriu que o seu filho mais novo era maricas. No fundo, a Mãe sabe que a culpa é sua porque sempre desejara ter uma menina. Então, mandava para a escola o pequeno Flávio, bem penteadinho e perfumadinho, o que fazia com que as outras crianças na carrinha do externato quase sufocassem com o aroma almiscarado da colónia do menino. As crianças são cruéis e a vingança veio sob a forma de alcunha: Nancy Bailarina. Com o tempo, o "Bailarina" caíu e, ainda hoje, as pessoas do bairro tratam o Flávio por Nancy. E o Bailarina tornou-se desnecessário porque Flávio ingressou no Conservatório de Dança.
O Telmo - o do meio - é que tem uma grande revolta, não pela alcunha atribuída ao seu irmão, mas pela delicadeza daquele em quem tinha depositado a esperança de ser o seu companheiro nas lides da tauromaquia.
A sorte da Mãe é que o seu Sandro António, o mais velhinho, desde tenra idade tinha mostrado um grande desejo de entrar para a vida eclesiástica, alimentado pelas centenas de pagelas, medalhas e imagens da Nossa Senhora que lhe trazia a Avó Benta quando ía a Fátima nas excursões da paróquia. Hoje em dia, é o Padre Sandro António e herdou do Avô a alopécia degenerativa que o faz parecer-se com um conhecido santo.
O Pai também é muito tranquilo, mas não passa muito tempo em casa. É camionista. Partilha os seus dias com um palito hidráulico e um calendário da Samantha Fox de 1986, a caminho de França.
A Avó Benta sucumbiu. Mais tranquila não pode haver.